Reacendimentos (1)
1
Todas as raparigas que amei nunca mais as deixei sair da
minha vida. Algumas nem devem ter reparado que eu existia.
São todas jovens espigas de trigo à maneira helénica. Tenho
por hábito fechar os olhos de tempos a tempos e vê-las. Sem elas nunca teria crescido.
Devem ter envelhecido como eu. Sento-me à sombra de um templo esquecido pelas
multidões e sorrio. Sinto-me tão bem aqui, penso. Acho que dentro de mim elas
se transformaram em colunas gregas.
2
Sempre que regresso a essa casa, fechando os olhos à medida
que a reconstituo para depois os poder abrir, sou invadido por uma estranha
serenidade, ou melancolia, que me provocam as coisas antigas.
Existem nessa casa inúmeros corpos. Sei que um deles é
extraordinariamente belo, talvez traga ainda os sapatos na mão, e um colar de
pérolas à cintura.
Como todas as recordações de infância, ele é branco, por
vezes coberto por uma leve e dourada penugem.
A sua nudez é mínima. É no entanto isso que o torna numa
pura recordação de beleza, e desejo, e luxúria.
3
Podes sempre agarrar em pequenas coisas e esquecer-te delas
nos bolsos, ou a marcar páginas de livros.
Mais tarde transformar-se- ão em estranhas pedras brancas,
como sirenes por entre o nevoeiro, ou rios.
4
Ia para Sesimbra no começo dos verões. Nesse tempo por qualquer
razão o verão demorava mais tempo.
No liceu alguém me disse que alguém lhe tinha dito que
gostavas de mim. Foi o suficiente para que as minhas borbulhas tomassem
proporções gigantescas e tudo fizesse para desaparecer. Acho que tinha medo das
raparigas.
Tinhas um café na estrada para Sesimbra. Os meus pais nunca
descobriram porque ficava tão nervoso nessa recta. Porque precisavam de me
dizer a mesma coisa três vezes.
Uma vez vi-te à porta. Estavas de pé à porta e nunca mais vi
nada tão aterrador e tão belo.
Passado tanto tempo já nada existe, a não ser essa recta.
Desapareceu tudo à volta. Sabes que quando lá passo ainda te vejo?
5
Ela volta-se para trás porque talvez tenha ouvido um remo na
água, ou o som de um peixe a saltar a afaste momentaneamente da leitura. Fica a
olhar porque lhe faz impressão. À medida que o barco se aproxima o homem vai
diminuindo. E no livro estava escrito pela voz de uma personagem “há coisas que
se afastam, outras que se aproximam, outras que não saem do mesmo sítio e
desaparecem por isso.”
6
Conheço um pouco a antiga poesia mediterrânica árabe.
Ser-me-ia talvez fácil, tanto quanto isso é possível, comparar a quase
imperceptível contracção do teu colo àquela curva do rio no sentido da
nascente.
Interpretaria o súbito arrepio da pele como fruto da chegada
dos guerreiros, esse afloramento em tudo semelhante ao vento norte que faz
subir as próprias águas.
Vim contudo de muito mais longe. Nesses lugares são
desconhecidas estas espécies de tempestades.
De tão longe que após as actividades do amor não me
importava que tudo cheirasse a feno. Esse calor que do teu corpo se desprende
se transformasse na própria tarde para os meus lábios.
7
Existirá provavelmente uma predisposição dos meses para
certos nomes. Junho é propício à inclinação dos corpos saindo de si mesmos,
como Fevereiro o é às pequenas lesmas e aos animais celebrantes das chuvas e
dos súbitos anoitecer.
De Julho diria como adormeço a adivinhar-te a curva dos
joelhos.
8
Desenvolvi com o tempo a capacidade de olhar através das
coisas. O efeito é curioso. Estou sentado numa esplanada e olho fixamente uma
porta azul em frente. Como tenho saudades do verão, os veios e os nódulos
aumentam de tal maneira que se transformam em enseadas e mapas secretos. São
mapas secretos porque só eu os consigo atravessar. Até esses verões em que
punha creme nívea em todo o lado menos na cara. E sabes porquê?
Ficava com sardas. Imaginava que gostavas de rapazes com
sardas. Uma espécie de aparelho nos dentes, como todas as raparigas têm agora.
Nessa altura ainda havia enguias no rio. Apanhava-as e
punha-as dentro de frascos. Também julgava que isso te impressionava.
9
Nunca soube verdadeiramente o teu nome, Marion. Acho que era
um diminutivo e isso na altura chegava-me. Amei-te durante um Verão inteiro sem
que desconfiasses. Uma noite em que tiveste frio emprestei-te a minha camisola
alemã azul forte de marinheiro com fecho em cima que fazia gola alta. Dormiste
toda a noite com ela, enroscada como uma gata. Sabes que ainda a tenho passado
este tempo? Nunca a mandei lavar em Setembro, como era hábito. Ficou assim.
Também nunca mais a vesti. Mudo-a às vezes de gaveta e aproveito para sonhar.
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(1) Reacendimentos
Estes textos são na sua maioria de difícil datação… ou
porque correspondem a páginas extintas ou porque os sinto tanto que, mesmo antigos,
se reacenderam, como é o caso do último que aqui ponho e é o mais antigo e o
mais actual. Não me apetece reescrevê-los nem melhorá-los.
Depois de algumas voltas, finalmente percebi como foi feita a fotografia ... ;)
ResponderEliminarAinda bem que resolveu reacender estes textos. Sonhe mais vezes com Magritte :)
ResponderEliminarÉ uma fotografia simples,MJ.O que faz um Kit de promoção de perfumes e a vontade de ver Magritte...às vezes resulta..:)
ResponderEliminarIvone, muito obrigado.A maior parte das vezes fico-me pelo olhar,quando o consigo magrittiano já me dou por satisfeito... :)
Poesia Beleza na imagem e no teu texto, que escrever ou dizer algo estraga só o silêncio para saborear.
ResponderEliminarObrigada
Sónia
Pelo contrário, Sónia, muito obrigado por deixares palavras. :)
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